É preciso levar a tecnologia a sério

17/09/2020

No livro "Sociedade em Rede", Manuel Castells afirma que é preciso levar a tecnologia a sério. Isso parece óbvio, mas o sociólogo espanhol falava de algo mais do que entender que os aparelhos são básicos para acessar o mundo global; que você precisa ter o telefone atualizado, carregado, um bom fone de ouvido, e saber usar minimamente as redes sociais.

É nesse "parece óbvio" do parágrafo acima que reside o absurdo impacto de todos esses dispositivos sobre a existência de todos nós. Quando eles deixam de chamar nossa atenção e se tornam o "óbvio" é quando realmente transformam para sempre nossas vidas. E esse tempo chegou: é óbvio saber organizar uma reunião online, é óbvio conhecer os efeitos dos algoritmos na sociabilidade das redes, é óbvio conhecer o último meme, é óbvio... 

Só que não. Para muita gente, mas muita mesmo, mais do que pensamos, essas coisas não são tão óbvias assim... Não são "intuitivas", como diz muitas vezes o técnico de manutenção de computador para o cliente que fica se achando a mais ignorante das criaturas. Só para citar um problema, as pessoas que não conseguem entender esses conceitos e realizar essas práticas ficam excluídas. 

Importante registrar aqui as duas posições extremas sobre as mídias digitais: "hype" (confiança excessiva na tecnologia) versus "contra-hype" (desconfiança excessiva). Embora não me sinta confortável no rótulo de contra-hype, admito que minha reflexão aqui possa estar nesta linha. Na verdade, não quero demonizar as tecnologias da informação (TI). O que busco é acrescentar alguma crítica. Não nego as maravilhas do mundo digital, mas penso que haja uma certa ingenuidade quanto à sua naturalidade e benefícios.

Cibercultura e Platão

É por ser cultura - algo que sempre foi o conjunto de hábitos mais básicos e acessíveis a todos os membros de qualquer comunidade - que a cibercultura tornou-se tão poderosa. Mas ela é uma cultura acessível a todos? Não estou falando aqui do poder aquisitivo para comprar celulares e acessórios. Também não estou falando que nós, eu e você, em diálogo por meio desse texto, temos algum controle sobre a cibercultura, e conseguimos tirar dela tudo de bom que pode nos dar. Talvez isso seja ilusão...

O termo "cyber", cunhado pelo matemático estadunidense Norbert Wiener, em 1948, tem relação com "controle sobre informação". Talvez possamos comentar que as tecnologias de comunicação desde sempre mexeram com o controle social do saber. A tecnologia da escrita foi criticada por Platão. O filósofo grego acreditava que ela acabava com o diálogo entre o professor e o aluno. O discípulo poderia, então, aprender por meio da leitura, sem a presença do seu mestre.

Prefiro sempre acreditar na boa vontade de Platão - os gregos cultuavam o bom, o belo e o verdadeiro. Mas o fato é que, com a escrita, o conhecimento, antes transmitido apenas oralmente, ficou acessível a mais pessoas e quem o detinha perdeu o controle sobre o saber e, consequentemente, também o poder total sobre tudo e todos. Basta refletir que, antes dos textos, a sabedoria era transmitida oralmente, e pouquíssimos tinham tempo e treinamento para memorizá-la, apenas os sacerdotes e os nobres.

Na reflexão sobre cibercultura realizada pelo filósofo francês Pierre Levy já se manifesta uma contradição com a definição de Wiener, baseada em controle da informação. Segundo Levy, a cibercultura é caracterizada pela multiplicidade, pela fragmentação, pela desorganização. De acordo com alguns teóricos, a liberdade e a falta de hierarquia também constituem essa cultura tecnológica. Isso levaria, a princípio, a uma comunicação mais democrática na sociedade em rede.

Ciberespaço e mudanças em nosso cérebro 

Entra igualmente aqui a noção de "ciberespaço", expressão que surgiu no livro "Neuromancer", do escritor William Gibson, dos EUA. O futuro pós-apocalíptico distópico previsto por Gibson, entretanto, não mostra muito a liberdade e democracia previstas por Levy.

Mas, enfim, o ciberespaço seria um espaço não material, um "não lugar" onde vigoram conceitos como comunidades virtuais, inteligência coletiva, neuroplasticidade cognitiva, ou seja, a mudança física do cérebro humano pelo exercício de funções e partes dele ligadas ao uso dos celulares, tablets e tantos outros dispositivos e apps. Os adolescentes são o melhor exemplo dessas alterações.

E não vem de hoje a pressão do uso de meios técnicos que agem nas nossas sinapses. Vale a referência ao "número de Dunbar", do antropólogo britânico Roger Dunbar. Ele chegou à conclusão de que em nossa evolução, ao nos tornarmos homo sapiens, éramos capazes de estabelecer 150 relacionamentos significativos.

Para além do acerto preciso dessa quantificação e da consideração do que viriam ser "relacionamentos significativos", é interessante refletir que, após a configuração do primeiro hominídeo racional, as tecnologias de informação - escrita, imprensa, telégrafo, rádio, TV, internet... - pressionaram nossa capacidade de nos relacionarmos: aumentaram a quantidade de relações que travamos com outras pessoas. Será que não é essa pressão que causa o mal-estar e até o cansaço mental que sentimos quando nos comunicamos tão intensamente, mas nos relacionamos tão superficialmente nas redes sociais?

Cultura transmidiática e convergência

Outro aspecto da cibecultura é o transmidiático. O prefixo "trans" remete a "através" e, em consequência, a "atravessar". A utilidade dos conteúdos atravessa várias modalidades de produtos oferecidos na web. Por exemplo, a série vira game, que reúne uma comunidade de fãs; esses escrevem ficções sobre a saga original, cujo conteúdo é político e serve de metáfora para posicionamentos ideológicos; tudo isso fortalecendo, por vezes, comportamentos libertários ou de dominação. Tudo envolvido...

E há ainda a convergência digital. Nos anos 1990 previa-se o surgimento de um aparelho que reuniria as funcionalidades da televisão, rádio, telecomunicações, cinema, imprensa... Mas não era tão claro que o telefone celular viria a ser esse dispositivo. Algo a se aprofundar sobre a convergência é que ela não é só técnica e exterior. Ela se dá interiormente, na nossa mente, conforme nos capacitamos para usar a tecnologia, ou não... - há idosos que insistem em aprender a utilização dos aparelhos e outros que desistem.

Definindo quem é mais forte e quem tem mais bem-estar

Já a evolução técnica dos apps e gadgets, sim, é externa, material e concebida, sobretudo, nos países e setores sociais detentores do poder político e econômico. E é elaborada segundo as concepções culturais e políticas das pessoas beneficiadas por esse poder. Essas concepções, por sua vez, impregnam os objetos técnicos. E assim, eles não são neutros, mas em si definem relações que decidem na nossa sociedade quem é mais forte e quem tem mais bem-estar.

Por tudo isso, dizer que é preciso levar a tecnologia a sério significa bem mais do que escolher o celular adequado ou qual o melhor custo-benefício na compra de um pacote de internet.

PS: No meu perfil do Instagram, compartilho reflexões sobre Comunicação e Tecnologia da Informação. Se tiver interesse nesses temas, me segue no Instragram.com/marcello.benites


Realizei as reflexões acima a partir das seguintes obras:


Teorias das Mídias Digitais: linguagens, ambientes, redes, de Luís Mauro Sá Martino, editora Vozes

Vigilância Líquida: diálogos com David Lyon, de Zigmunt Bauman, editora Zahar

Sociedade em Rede, de Manuel Castells, editora Paz e Terra

Neuromancer, de William Gibson, editora Alep


Leia também