No post anterior, acenei sobre a cegueira discursiva, típica das discussões políticas no WhatsApp, e comentei que a incomunicabilidade não é uma novidade das redes sociais. As fake news e a pós-verdade são os mais recentes desses fenômenos de incomunicabilidade e geram um "discurso cego" sobre a realidade.

Embora nossas reflexões possam valer para todo o ambiente virtual, elas são focadas sobretudo no WhatsApp. Esse app mensageiro é a rede mais aberta à disseminação de fake news já que, nos grupos, protegidas por criptografia, as mensagens não podem ser verificadas por agências de fact checking. Além disso, nós temos confiança nas pessoas que nos estão próximas. E é assim que tendemos a ver os integrantes dos nossos grupos de família, da igreja ou do trabalho, por exemplo. Com frequência, então, confiamos no que eles postam e, por muitas vezes, compartilharmos também, antes de refletir e checar se a notícia é verdadeira.

O jornalista Mike Wendling, numa matéria para a BBC, lembra que sites da Macedônia produziram fake news, impulsionadas também pelo WhatsApp, que fizeram a diferença nas eleições dos EUA em 2016. No Brasil, observamos, fenômeno semelhante, com o sucesso de candidatos com pouco tempo no horário eleitoral de TV em 2018. Dá para imaginar o impacto das notícias falsas em nosso país, onde o WhatsApp é a segunda maior rede social, com 120 milhões de usuários, atrás do Facebook, que tem 122 milhões. Os brasileiros são 10% dos usuários mundiais do mensageiro (dados da revista Exame em 2019).

A troca de mensagens por meio de aplicativos é a utilização da internet mais frequente para os brasileiros: 94,5% dos entrevistados, de acordo com o IBGE/PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) - 2016. Para citarmos um exemplo nacional, Juliana Gragnani, também da BBC, fala dos boatos altamente depreciativos sobre a vereadora Marielle Franco em grupos de família, que viralizaram pelo WhatsApp na noite em que ela foi executada, chegando, em seguida, ao Facebook e ao Twitter.Para algumas menções atuais da relevância do tema, citamos ainda o inquérito no STF sobre as fake news que atingiram os ministros do Supremo, a Lei das Fake News aprovada no Senado, em trâmite atualmente na Câmara, e as medidas restritivas do próprio WhatsApp ao encaminhamento massivo de mensagens.

AS FAKE NEWS SURFAM NA ONDA DA PÓS-VERDADE

O Dicionário Oxford elegeu a expressão "pós-verdade" como a "A Palavra do Ano" de 2016, e indicou os primeiros registros dessa palavra na década de 1990. O termo denota "circunstâncias nas quais os fatos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal". A noção esteve presente nos debates sobre o Brexit e nas últimas eleições presidenciais dos EUA e do Brasil, representada nos dois lados das disputas. A pós-verdade acontece também por meio de processos tecnológicos de divulgação. A atuação da Cambridge Analytica, empresa inglesa que realizou marketing político via Facebook, enviando informações falsas para milhões de usuários, também teria favorecido o resultado dos processos acima citados nos Estados Unidos e na Inglaterra. O escândalo está sob investigação criminal.

Sim, também nesses dois casos, as fake news circularam, surfaram na onda do ambiente cultural da pós-verdade. Ela é a mentira na qual queremos acreditar. As notícias falsas mais poderosas são as que misturam fatos verdadeiros com "fakes". A metade verdadeira faz com que não desconfiemos da parte falsa, já que é muito tentador crer naquela informação como um todo, ou seja, no fato político que gostaríamos que acontecesse. Quando nos damos conta, já tomamos a decisão política ligada à nossa crença, ou já compartilhamos aquela mentira. E outros amigos ou conhecidos que confiam em nós possivelmente fizeram o mesmo...

Esse substantivo sofre de um deslizamento do significado do prefixo "pós". Não é como em "pós-moderna", a arte realizada após o declínio da moderna, ou "pós-coloniais" fenômenos sociais ocorridos depois do período histórico do colonialismo. Assim, pós-verdade não é algo que ocorre "após a verdade ser conhecida", mas algo que pertence a um tempo em que a própria verdade se tornou irrelevante.

E aí, é emblemática a frase do dramaturgo estadunidense de origem sérvia Steve Tesich - Oscar de melhor roteiro original em 1979, com "O Vencedor": "Nós, como povo livre, decidimos livremente que queremos viver em algum mundo pós-verdade". "Livre" e "livremente" nessa frase não são falta de estilo, mas ênfase e ironia.

O texto teria sido o primeiro uso da expressão pós-verdade, que Tesich publicou a respeito da Guerra do Golfo em 1994, na revista The Nation (EUA). Ainda como registro da relevância do tema, menciono a publicação, em 2004, do livro The Post-truth Era, de Ralph Keyes / A Era da pós-verdade pela Editora Vozes. A partir da eleição de Trump e do Brexit, em 2016, a expressão ganhou grande espaço na mídia.

O jornalista Carlos Castilho, no site Observatório da Imprensa, afirma que pós-verdades são um jeito impactante de atrair o público saturado de informação e vulnerável à alienação. Ocorre uma substituição dos "fatos por indícios, percepções por convicções, distorções por vieses". As pessoas abandonam a distinção tradicional entre certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, fatos ou versões, verdade ou mentira. E entram "numa era de avaliações fluídas, terminologias vagas ou juízos baseados mais em sensações do que em evidências". A verossimilhança, ou seja, o que "parece ser" ganha mais importância do que a comprovação do que se diz. E a abundância de informações produzidas pelas novas tecnologias é o ambiente propício, no contexto da pós-verdade, para gerar centenas de versões sobre um mesmo fato.

Na próxima postagem, a penúltima dessa série sobre a cegueira discursiva no WhatsApp, falarei do projeto da ação comunicativa na esfera pública, do filósofo alemão Jürgen Habermas e também Análise do Discurso (AD), disciplina derivada da Linguística e surgida nos anos 1960. A AD é a metodologia científica que me permitiu chegar ao conceito de cegueira discursiva. Até lá!

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