O que as discussões de WhatsApp têm a ver com a Grécia Antiga?

04/09/2020

Você discute política no WhatsApp, no privado ou em grupos? Veja se não acontece de as pessoas expressarem as próprias opiniões com vídeos, textos, áudios e diferentes tipos de postagens produzidas por outras. Além disso, muitas vezes você não se sente sem resposta aos argumentos que apresenta e tem a impressão que ninguém ligou para o que você escreveu? Por vezes, parece que toda a expectativa que tem de debater as questões públicas fica frustrada? Que quanto mais as pessoas discutem, menos elas se entendem? E, ainda, percebe que cada vez mais gente começa a achar normais coisas que antes eram consideradas absurdas, como, por exemplo, que a Terra é plana ou que vacina é prejudicial à saúde? 

Eu chamo isso de "cegueira discursiva". Já falei sobre esse conceito num congresso de pesquisadores em cibercultura e em algumas lives que divulguei aqui. Ela seria constituída por essas quatro situações bem típicas de mensagens do WhatsApp que apresentei acima e que chamei de: 1) Debate de reproduções; 2) Não-resposta; 3) Ilusão deliberativa; 4) Reescrita da história.

Vou desenvolver esse tema aqui no Face, aos poucos. Antes de entrar em detalhes sobre os elementos da cegueira discursiva, falo um pouco sobre a incomunicabilidade que é, afinal, no que estamos imersos quando tentamos nos comunicar nas redes sociais, por mais contraditório que isso pareça ser. 

Os problemas de comunicação têm registros imemoriais. Já na mitologia grega temos a ninfa Eco, que era muito falante e gostava de sempre dar a última palavra. Ela enganou Juno, esposa de Zeus, distraindo-a e falando sem parar, para que a deusa não surpreendesse o marido que a traía com outras ninfas. Então, Juno transformou Eco em pedra e a partir daí a ninfa sempre diz a última palavra. O eco que conhecemos é, por sinal, uma "não-comunicação" em que não existe um interlocutor, na qual ouvimos apenas o que falamos. E parece que muitas vezes é apenas isso que queremos...

Também vemos a insuficiência da linguagem nos Diálogos de Platão, no Crátilo, sobre a origem das palavras. A discussão tinha duas posições: 1) a nominalista, que sustentava terem as palavras uma ligação direta com as características das coisas; e 2) a convencionalista, afirmando que as palavras são uma convenção, um consenso, entre as pessoas. O debate é vencido pelo convencionalismo. Porém, Sócrates, personagem frequente nos Diálogos de Platão, conclui, a partir daí, que a linguagem não é útil para se atingir o conhecimento. Mas por quê? Bem, se eu e você vamos combinar o nome a ser dado a alguma coisa e eu sou mais poderoso, posso impor o nome que mais me interessa. O Descobrimento do Brasil, se fosse nomeado pelos índios poderia ser, por exemplo, A Grande Devastação.

Também podemos encontrar o problema da linguagem na literatura, com a afirmação da Raposa ao Pequeno Príncipe: "A linguagem é uma fonte de mal-entendidos". E no romance polifônico de Dostoiévski, a jovem Lisa diz ao monge Aliocha, o mais novo dos irmãos Karamázov: "Criamos a palavra para mentir por meio dela. E, desde que criamos a palavra, todos mentem ".
Mas temos referências animadoras sobre a linguagem, como os debates na Polis Grega, que inspiraram a nossa democracia, e muito mais recentemente, o Iluminismo. Basta lembrar a expressão atribuída a Voltaire, que mesmo tendo a autoria dele questionada, representa muito bem o pensamento do filósofo e o Ideal iluminista: "Posso não concordar com nenhuma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Trata-se de um belíssimo modelo de liberdade comunicativa. 

E há o sistema dos três poderes, com seus freios e contrapesos, preconizado por Montesquieu, que dá um lugar privilegiado ao Parlamento, etimologicamente, "o lugar onde se fala", onde ocorre a deliberação, ou seja, a discussão e decisão sobre as questões públicas. Cabe-nos a atitude crítica de perguntar se nossos parlamentares apenas falam, ou também escutam uns aos outros. E aqui a questão da comunicabilidade está posta com grandes consequências para a sociedade.

Nos próximos posts, falarei dos atualíssimos fenômenos de incomunicabilidade que são as fake news e a pós-verdade; comentarei simplificadamente o modelo da ação comunicativa do filósofo alemão Jürgen Habermas, que pode nos ajudar a ter uma comunicação mais saudável nas redes sociais; e finalmente detalharei a minha teoria da cegueira discursiva no WhatsApp. Convido todos a me acompanhar e dialogar comigo nos comentários. São todas bem-vindas e bem-vindos!!