Não é sobre a pandemia

03/09/2020

O coronavírus mudou o mundo a partir do final de 2019 e pautou toda a mídia e as redes sociais. Não se fala de outra coisa. Só do número de casos e mortos, do novo normal, da queda nunca vista da economia, da politização do vírus, das legiões de pessoas na pobreza extrema, das vacinas, das teleconferências, das rotinas domésticas no isolamento social, da sua flexibilização, da retomada econômica etc. Os processos tecnológicos e seus operadores ganham agora um poder ainda mais assustador. E no cenário caótico ao qual já há tempos nos acostumamos, vendo/lendo filmes/livros distópicos, aqueles sobre o fim do mundo, líderes e ideias totalitaristas ficam mais à vontade. É... Impossível mesmo falar de outra coisa.

Só que não. Os processos de luta e resistência existentes antes da pandemia continuam. As situações de injustiça, bugs do sistema, seguem sendo desmascaradas e gerando novos insurgentes. As visões sábias que apontaram essas falhas continuam com razão e ainda podem nos inspirar. Baseou-se nessas inspirações o meu post anterior - falando de como a série 3% da Netflix mostra que a meritocracia funciona bem... Para o mal. Aquele texto foi o início de um projeto que agora apresento aqui. 

É o projeto de sustentar que várias dinâmicas vitais e cruciais antes da Covid-19 seguem prementes. São os processos democráticos da comunicação no Brasil, notadamente o que aconteceu a partir das Manifestações de Junho de 2013, que escrevo assim, com iniciais maiúsculas, pela sua importância histórica, como foram a Independência e a Proclamação da República. A trajetória iniciada há sete anos resultou nos mais recentes marcos da história brasileira: a queda de Dilma, o assassinato de Marielle Franco e a eleição de Jair Bolsonaro.

É óbvia a ligação desses três nomes com o fato de nunca ter sido tão claro que o feminismo, o antirracismo e a luta contra homofobia estão entre as principais e inadiáveis causas para que continuemos a ser humanos - "Causa", por sinal, é o nome do grupo dos que resistem à dominação na série que citei acima. Como num filme em retrocesso, podemos ver claramente o papel das redes sociais na eleição de Bolsonaro, em outubro de 2018, na depreciação de fake news sobre Marielle após sua morte, em março daquele ano, e na derrubada de Dilma, em 2016.

Avançando mais no passado em nosso "filme", o ano de 2013, anterior à reeleição da presidente, tinha um contexto político no qual o Brasil havia convencido o mundo acerca de um incontestável avanço social e econômico. Conquistou o direito de realizar a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, e fazia projetos de conseguir uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. O país era visto internacionalmente com essa credibilidade. 

Porém, as investigações sobre corrupção no Mensalão e indícios do que viria a se revelar com a Operação Lava Jato lançavam desconfiança sobre tudo isso. Aquele foi o ano da Copa das Confederações, vencida pelo Brasil, da visita de Papa Francisco e das centenas de milhares de pessoas, principalmente jovens, que tomaram as ruas em todo o território nacional com as causas mais diversas, muitas vezes contrárias entre si. Ali começaram a se organizar e assumir-se como agentes políticos as forças que galvanizariam, cinco anos depois, eleitores para o atual presidente.

"Não me representa", "Não vai ter Copa", a luta do Movimento Passe Livre que conquistou passagens de ônibus mais baratas, e a violência dos Black Blocs foram algumas das marcas de 2013. Outra dessas marcas foi o grupo Mídia Ninja. Com celulares, notebooks e coberturas ao vivo em transmissões streaming, e tomados por um misto de consciência política, coragem e loucura, os jovens do grupo enfrentaram a polícia em várias capitais. E mostraram que a violência com frequência não partia dos manifestantes como a grande mídia mostrava. Eles faziam o que faltava ao jornalismo convencional e chamaram a atenção dos mais importantes veículos da imprensa internacional. 

A visão dos jornalistas sobre o fenômeno tecnológico e cultural representado pelos Ninjas, ou seja, que hoje, com um celular, qualquer pessoa é um comunicador em potencial, é o tema do livro que lançarei em novembro. "A Origem da Mídia Ninja no Discurso dos Jornalistas" sairá em e-book e papel pela editora Apris. Estão todos convidados para o lançamento, com data e formato, virtual ou presencial, a serem definidos.