Por que sou de esquerda

11/09/2020

Após toda aquela tensão das eleições de 2018, resolvi realizar um percurso de reflexão, revisitar de forma sistemática leituras que fiz na minha vida e que ficaram esparsas pelos anos, resultando no que sou politicamente. Por que eu voto na esquerda? Por que eu sou de esquerda? Sim, eu sempre com releituras.... Cheguei num ponto decisivo. A contemplação das três forças que marcaram a retomada da democracia nos anos 1980.

Quais foram essas forças? 1) As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da igreja Católica, única voz de resistência que o governo não conseguiu calar, sim, com Frei Betto e outros; 2) a esquerda revolucionária armada (e derrotada, massacrada, com sobreviventes aos frangalhos, fisicamente e psiquicamente, chorando seus mortos, recebendo de volta seus exilados), sim, com Dilma e outros; e 3) o sindicalismo que ressurgia, no ABC paulista, décadas depois de ser cooptado pelo o Estado Novo e se tornado "pelego", e que ressurgia apesar da forte repressão militar pós 1964.

Os sindicalistas, sim, com Lula, galvanizavam essas forças num projeto que não podia deixar de ser pacífico, pelas características que descrevi em cada uma delas: uma proposta cristã autêntica não podia não querer a paz; sobreviventes da resistência armada não queriam mais/não tinham mais como lutar com armas; sindicalistas, que em sua maioria nunca foram marxistas, queriam apenas condições de trabalho e salários dignos.

Daí a alegria esperançosa de retomada da vida naqueles anos - eu estava concluindo o Ensino Médio e, pouco depois, ingressava na Faculdade de Jornalismo da Universidade do Amazonas (UA), hoje Universidade Federal do Amazonas (Ufam), curso que concluiria em 1991 na UFRJ. Daí a esperança de paz, as músicas de Chico Buarque e outras da MPB, que agora sem censura, compunham a trilha sonora da época. Daí a luta pelas eleições diretas, os discursos de Ulisses Guimarães, a Constituinte....

Construíamos um novo Brasil, onde também os militares se integraram, chegando, nos anos anteriores a Bolsonaro, a desempenhar um importante papel institucional no país. Era o início de um período que foi o mais feliz de toda a história nacional - claro, que isso é uma percepção pessoal, porém, não só minha, e, sim, de tanta gente... - e que terminou em 2018.

Estudando sobre a reinvenção das direitas ocorrida a partir das Manifestações de 2013, entendi que a reciclagem do "perigo vermelho", ou seja, a atualização do medo do comunismo, foi o principal trunfo para a eleição do atual presidente. Identificar Lula como representante da ideologia que é vista como responsável pelos massacres stalinistas foi e é risível. Mas deu certo.

Por que é risível? Peço licença aqui para transcrever trecho de uma entrevista com o principal fundador do Partido dos Trabalhadores feita pelo jornalista Mário Morel em 1980 no livro "Lula: o início", de 1980, republicado em 2006 (editora Nova Fronteira). O trecho conta, claro, com o bom humor e a espontaneidade do entrevistado.

Perguntado sobre se os quadros marxistas do PT "faziam sua cabeça", o sindicalista respondeu:

"Não (...), eu jamais permitirei que façam a minha cabeça. Eu não sou um cara muito chegado às definições ideológicas. Eu gosto de fazer as coisas a partir da minha prática. A partir das minhas possibilidades. Eu não quero saber o que Marx fez, o que Lenin fez, o que Engels fez. Eu não quero saber p**** nenhuma disso. O que Trotsky fez, eu não quero. Eu quero saber o que eu posso fazer".

Depoimento, eu diria, bem pragmático.

Caminhado para o final dessa reflexão, cito o professor de história e escritor comunista Jones Manoel, entrevistado por Caetano Veloso no canal da Mídia Ninja: "Existe uma luta de classes pela história e pela memória". Hoje, as elites estão vencendo a luta de contar o que ocorreu nos últimos 40 anos. Essa narrativa, que se tornou hegemônica recentemente no país, conseguiu fazer com que muitos como eu, gente de esquerda, se envergonhassem desse passado de conquistas ocorrido dos anos 1980 até 2018. Ou seja, aceitassem a narrativa de que os que nos lideraram foram todos corruptos.

O mesmo Jones mencionou um provérbio africano: "Enquanto os leões não contarem sua história, as histórias de caça continuarão glorificando o caçador". É o que tentei fazer neste artigo. Revisitar a história recente e resgatar minha identidade política, meu orgulho de ser de esquerda, e contar tudo aqui.

Concluo comentando a resposta de Franklin Martins - sim, o sequestrador do embaixador dos EUA durante a ditadura - no livro "1968: O que fizemos de nós" (editora Planeta, 2008). O autor, Zuenir Ventura, perguntou como o então ministro da Comunicação Social de Lula se definia ideologicamente. Ele respondeu: "Sou de esquerda. [Muita gente questiona: ] 'Mas como, se não existe mais isso?' Bobagem, existem esquerda e direita. Esquerda é quem acha que o mundo não se resolve naturalmente: as injustiças não desaparecem naturalmente. É necessário lutar contra elas. O mercado não resolve as injustiças, é necessária a intervenção do Estado, para contrabalançar as distorções que ele, o mercado, produz. No mercado sempre ganha o mais forte. A política dá oportunidade para o mais fraco poder prevalecer".

Por isso eu sou de esquerda.


SUGESTÕES DE LEITURAS E VÍDEO

O Ódio na Política: A Reinvenção das Direitas no Brasil, de Esther Solano (Org.), editora Boitempo

A Vida quer é Coragem: a Trajetória de Dilma Rouseff, a primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral, editora Primeira Pessoa

Lula: o Inicio, de Mário Morel, editora Nova Fronteira

1968: O que Fizemos de Nós, de Zuenir Ventura, editora Planeta

O que é Sindicalismo, de Ricardo L. C. Antunes, editoras Abril Cultural / Brasiliense

O que é Comunidade Eclesial de Base, de Frei Betto, editora Brasiliense

Caetano Veloso entrevista Jones Manoel no canal da Mídia Ninja